sexta-feira, 21 de maio de 2010

Diálogo

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Toca a campainha e o homem vai abrir a porta, não sem antes dar um passo de dança. Na porta está uma mulher. No caso, “mulher” é eufemismo. Ela é mais do que isto. Se Deus fosse mandar uma amostra do Seu trabalho para concurso, mandaria ela. Preciso me lembrar desta frase para dizer depois, pensa ele.

– Alô – diz ela.
– Alô. Entre.

Ela entra e olha em volta.

– Eu sou a primeira?
– Não. Desde os 15 anos que eu... Ah, você quer dizer a primeira a chegar. É, é.
– Bonito, seu apartamento.
– Depois que você chegou ele ficou.
– O quê?
– Bonito.
– Mmmm.

Que diálogos, pensou ele. Que diálogos! A noite prometia.

– Me dê seu casaco, sua bolsa...

Ela dá. Ele fica parado ao seu lado. Ela diz:

– Eu não vou tirar mais nada...
– Ah. Certo, certo.

Ele vai guardar o casaco e a bolsa. Ela examina a sala do apartamento. Em cima da mesa de centro há um balde com uma garrafa de champanhe em água gelada e dois copos compridos. O homem volta. A mulher diz:

– Você não falou que ia ter uma festa?
– Onde você estiver, é uma festa.
– Mas você disse que haveria convidados.
– Sim.
– Eu só vejo dois copos.
– Yes.
– E os outros?
– Que outros?
– Os outros convidados.
– Mmm. Sim. Bem. Se eles chegarem, eu...
– “Se”? Quer dizer que eles podem não vir?
– Pode ter havido um esquecimento.
– Eles podem ter se esquecido de vir à festa?
– Ou eu posso ter esquecido de convidar...
– Já vi tudo. A festa é só nós dois.
– Eu prefiro grupos pequenos. Você não?

Que timing. Que marcação. E não tem ninguém gravando isto!
A mulher sorri e rodopia no meio da sala. Seu vestido branco esvoaça.
Que pernas, que noite! Ele serve champanhe para os dois. Ela fala.

– Vou avisando uma coisa...
– O quê?
– Esta noite eu sou a Cinderela.
– Cinderela? Por quê?
– Até a meia-noite me comportarei como uma dama...

Ele ensaia um passo, arqueia uma sobrancelha e pergunta:

– E à meia-noite?

Ela o afasta com a mão.

– À meia-noite eu saio correndo.
– Não há por que se preocupar. Se você é Cinderela, eu serei seu servo, seu cocheiro, seu escravo.
– Então me serve mais champanhe, servo.

Ele serve, pensando: “Tomara que ela diga que as bolinhas do champanhe fazem cócegas no seu nariz...”.

– As bolinhas do champanhe fazem cócegas no meu nariz...
– Isso eu também faço e não sou champanhe.
– O quê?
– Cócegas no seu nariz.
– Não entendi.
– Esquece, esquece.

Não se pode acertar todas, pensa ele.

– Você não quer conhecer a minha biblioteca? – pergunta.
– Quero.– Venha. Traga o seu copo.
– Mas, espere... Ali é o seu quarto.
– Minha biblioteca fica no quarto. Os dois livros, ao lado da cama.
– Então traga para cá.
– A cama?
– Os livros.

Ele a enlaça pela cintura. Rodopiam juntos, depois caem no sofá. Ele pega a garrafa de champanhe e serve mais um pouco.

– Acho que você está querendo me embebedar...

Quem diz isto é ele.

– Se você já abriu o champanhe agora, o que é que nós vamos abrir à meia-noite? – pergunta ela.
– Talvez um zíper ou dois...

Preciso me lembrar de tudo isso para contar depois, pensa ele. De algum lugar no apartamento vem a voz de Frank Sinatra.

– É meia-noite.
– Como é que você sabe?
– Meu cuco.
– Pensei que fosse o Frank Sinatra...
– A imitação não é perfeita? Ele usa até o mesmo tipo de chapéu.

Ela tenta levantar do sofá.

– Hora de ir embora...
– Daqui você não sai, Cinderela.
– Mas você não disse que era o meu servo?
– Disse.
– Pois eu estou ordenando que você me leve para casa.
– Não.
– Por que não?
– Porque bateu meia-noite e eu me transformei num rato! Feliz Ano-Novo.

Meia hora depois, ela está nua, embaixo dos lençóis, e ele está numa mesa do quarto, escrevendo.

– Você não vem? – pergunta ela.
– Só um pouquinho. Estou tomando umas notas para não esquecer nada depois. Quando você falou que o champanhe fazia cócegas no seu nariz, o que foi que eu disse mesmo?


Luís Fernando Veríssimo

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